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CONTOS VERDES E MADUROS DE CARMO CHAGAS - Revista Publicittà CONTOS VERDES E MADUROS DE CARMO CHAGAS - Revista Publicittà

CONTOS VERDES E MADUROS DE CARMO CHAGAS

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Jornalista, o mineiro Carmo Chagas sempre foi respeitado pelo texto brilhante, mais do que isso, pelo caráter, simplicidade e compreensão com os colegas de profissão e aqueles que o rodeiam. Elegante no estilo, preciso no trato da informação, Carmo Chagas lança no próximo dia 18, às 19 horas, na Livraria Cultura, do Conjunto Nacional, em São Paulo, capital, o livro “Contos Verdes e Maduros” pela Editora Reflexão. Só que, antes, nossos leitores têm o privilégio de ler o prefácio escrito por outro jornalista, Fernando Mitre, e dois contos que integram o livro. 

 

PREFÁCIO

Nas fronteiras do texto jornalístico, começa o território mágico da fruição literária. É de lá que Carmo Chagas, chegado há tempos naquelas paragens, nos manda as histórias deste livro.

A delicadeza e a força concentrada – às vezes, injeção na veia – se revezam no seu fraseado, esculpido na pontaria precisa da combinação de palavras. E a sutileza da forma, que daí resulta quase sempre, molda com rara eficiência o conteúdo de realidades fortes, até chocantes, – enfim, nada delicadas –, que povoam nosso dia-a-dia. Um texto que revela.

Revela e faz aflorar também belezas ocultas, preciosidades explicitadas, enquanto escava a superfície aparente e vai atingindo camadas até então imperceptíveis. É assim que o Carmo provoca nossa sensibilidade e nos envolve nesta viagem pelas estradas que ele constrói esteticamente com um talento invejável – que, aliás, já se insinuava desde seus primeiros lances como jornalista. E aqui fala uma testemunha de sua vida pessoal e profissional.

Sentado muitas vezes a seu lado numa mesa de redação e apreciando a rapidez e a precisão com que montava e redigia suas matérias, não podia deixar de desconfiar: ali naqueles pequenos achados, na frase trabalhada com um esmero único, na alegria do título criativo, se aproximando do poético, ali estavam sinais de que o salto logo se daria. Do simples texto referencial, o jornalístico, para o território da estética.

O bom texto literário sugere naturalmente vários níveis de significação e entendimento. Não se esgota na primeira leitura. Vai além da reprodução meramente fotográfica do quadro objetivo. E costuma nos oferecer aquele prazer – mais do que o prazer do texto, na verdade, a sua fruição mesmo – que é a confirmação do poder da narrativa literária de se renovar diante de nossos olhos.

E é claro que também nos renovamos diante dela.

Há cinqüenta anos, li um conto escrito por aquele jornalista ainda inexperiente nos seus 23 anos, embora já encantando a todos na redação pela intimidade com a máquina de escrever (foi há cinqüenta anos, lembre-se, em pleno reinado da velha Olivetti).

E agora, já maduros e vividos – eu leitor e ele autor – reencontro este conto. É o que está na página … deste livro:  Primeiro Assalto. Nele vejo um exemplo instigante, neste conjunto variado e rico de contos brilhantes, para ilustrar e demonstrar, por uma experiência própria especialíssima, como o texto literário permanece no tempo, se renova e se fortalece. De fato, se reatualiza diante do leitor. Inclui-se, no caso, um forte conteúdo precursor. Naqueles anos verdes, já estavam acionadas as antenas do Carmo.

Voltar a um texto literário cinqüenta anos depois – munido de um repertório infinitamente mais denso e mais exigente – e se surpreender com a força narrativa, mergulhar na história e, principalmente, no seu modo de contar e extrair dali novos efeitos é uma experiência que se auto-explica. (Se você interromper a leitura do prefácio e correr à procura deste conto, eu entenderei perfeitamente. Mas falarei só um pouco mais dos textos do Carmo e do conto de um modo geral.)

Aprendemos com o mestre Edgar Allan Poe, que líamos e discutíamos sempre – autor da primeira teoria do conto – que o contista deve fazer uma combinação de acontecimentos capaz de alcançar densidade e tensão narrativa, como elementos básicos na composição da história curta. Um dos objetivos é criar as condições para que o receptor não seja atingido por qualquer acidente no ato da leitura. Que comece e vá até o fim.

É um dos maiores desafios deste gênero literário:  manter o leitor sob seu controle ou, se quisermos a expressão de Poe, sob o mesmo estado de alma.

Envolvido pelas histórias que o Carmo conta, mas, principalmente, pelo modo como ele conta, estive durante a leitura dos textos deste livro sob absoluto controle de sua força narrativa.  É o resultado feliz da articulação de todos os lances do enredo para manter a ação num ritmo sem tréguas de fluência e densidade.

Não há mesmo possibilidade de qualquer ruído ou acidente no ato da leitura de um conto como o Meu Gato, página …,  ou como Questão de Sobrevivência, página …, ou ainda, mais um exemplo, o que abre este livro, o Dora, Téa , página …: aquela menina prodígio  que, depois dos cinco anos, “vestida de saiote engomado, corpete de lantejoulas, sapatilhas recobertas de cetim, precariamente equilibrada em cima da tábua que trepida sobre o rolo instável, os bracinhos querendo ser asas, as mãozinhas achando apoio no ar, os dedinhos apontados para a lona, lá no alto, o rosto iluminado por um sorriso confiante de quem não vai cair e por fim se lança num salto ousado, quase um vôo até …” (que texto!).

Você ainda não correu para ler os contos que estão aí à sua espera?

 

Fernando Mitre

 

PS – Este livro chega junto com a notícia de que Carmo Chagas deixou suas atividades como jornalista para se dedicar aos projetos literários. Dizem que sua gaveta está cheia. O jornalismo perde muito, é óbvio. Mas a literatura pode ganhar muito mais. Sou torcedor do time da Literatura e, portanto, estou comemorando. FM

Convite_02

On-nde veio a fál-lecer

(Inédito, esboçado em fins de 1975, após a morte do jornalista Vladimir Herzog por seus torturadores; concluído em 1984)

 Seb-astião Fer-reira da Sil-lva, lavrador, no ponto de ônibus de Morro do Monte Agudo. Na cabeça, o boné de brim, casquete, e as idéias, o sonho de um emprego em Belo Horizonte. A mãe, o pai, um tio, três irmãos mais moços, alguns colegas de lida na roça. A mala pequena, de papelão reforçado nas quinas com chapinhas de metal, alça de madeira. Uma sacola branca, de pano de saco de farinha de trigo. As recomendações, as lembranças. O ônibus. Abraços, despedidas. Nós nas gargantas, meias lágrimas.

Depois, Morro do Monte Agudo passando pela janela. Casas e pessoas conhecidas ficando para trás, desaparecendo junto com o sol do entardecer. Sentada ao lado dele, no mesmo banco, uma senhora com o filho pequeno. À frente, a mãe dela, o tempo todo aflita, com medo de o genro não esperar por elas na Rodoviária, em Belo Horizonte. Mais atrás, um grupo de rapazes e moças, estudantes, em algazarra no começo da viagem; e dormindo, pelo meio da viagem; e despertando para farrear de novo, no final. Poucas paradas pelo caminho, “dez minutos para o café”.

E depois, pelas dez da noite, o clarão distante que se aproxima, aumenta. A enorme cidade, interminável, Belo Horizonte. Edifícios mais altos que uma capoeira de jequitibás. A linda, faiscante Rodoviária. Os carregadores, jalecos engomados, coloridos, rodando espertos na multidão. A escada rolante. A infinidade de lojas, bares, botecos. O alto-falante, invisível, como torneira aberta de tempo em tempo a jorrar avisos: “Pitangui, vinte e duas e trinta!”, “Montes Claros, vinte e duas e trinta!”, “Ponte Nova, vinte e duas e trinta e cinco!”, “Inhapim, vinte e duas e quarenta!”, “Queiram tomar seus lugares!”

Depois, o moço engraxate, desembaraçado, explicando como e por onde sair da Rodoviária e chegar ao ponto de ônibus na Avenida Afonso Pena. “Fique ali”, recomendara a mãe, “até aparecer o Pirajá. É um amarelo e vermelho, escrito Pirajá bem na frente. Se você chegar depois da meia-noite, é melhor ficar na Rodoviária mesmo, até seis da manhã. Depois de meia-noite não passa mais ônibus para o Pirajá”. Não eram nem onze horas. Então, para a Avenida Afonso Pena, para o ponto. Mais quatro pessoas estavam lá. Também esperando o Pirajá, disseram. Não se interessavam, absolutamente, pelo que ocorria à volta. Os carros passando sem parar, os edifícios imensos, a quantidade de gente apesar de tão tarde, as lâmpadas fortes, claras como dia.

E depois, o Pirajá, amarelo e vermelho, quase vazio. Só aqueles quatro, cinco que estavam no ponto, mais uns oito que vinham dentro. Interessante que o ônibus realmente parasse a um simples sinal de mão. E também o sistema de pagamento: o passageiro sobe, vai pelo corredor onde fica o trocador sentado atrás de uma mesinha, entrega um trocado e pronto, está pago. Agora, era prestar atenção até aparecer a igreja branca, do lado esquerdo. Depois dela, esperar o ônibus vencer uma ladeira e, no alto do morro, puxar a cordinha estendida logo acima dos assentos. O ponto, para a descida, deve ficar em frente a um bar, aberto até as duas da madrugada. Tudo certo, de acordo com as instruções. Saindo da Afonso Pena, já não se viam tantos edifícios, mas sobrados e casario baixo. O movimento de automóveis diminuía. As luzes não eram tão fortes. Quanto mais se afastava o ônibus, saindo da região central, mais Belo Horizonte ia ficando parecida com as cidades pequenas, ruas de paralelepípedos, vazias de gente àquela hora, uns barracos, becos sem calçamento, de vez em quando um sobrado, um terreno coberto de mato, uma igreja branca do lado esquerdo, na subida de um morro. Era a tal, com certeza. Chegada a hora, puxar a cordinha esticada logo acima da cabeça. O sinal para o motorista parar. Deu certo.

Depois, o bar. Igual ao de Morro do Monte Agudo. Talvez até mais fraco; sinuca, por exemplo, não tinha. O balcão, as pessoas, o movimento, os homens na mesa ao fundo, bebendo cerveja, tudo igual a Morro do Monte Agudo. No caixa, mais uma vez de acordo com as instruções ouvidas em casa, o rapaz magro e de óculos, de avental.

– Você é o Antônio Laurindo, dos Laurindo lá de Águas Claras?

– Sou sim. E você?

– Sou de Morro do Monte Agudo, primo do Efigênio, que mora aqui no Pirajá. Me disseram para procurar você, para você me ensinar onde fica a casa do Efigênio. Estou acabando de chegar de Morro do Monte Agudo. Vim trabalhar aqui em Belo Horizonte.

– Então você é primo do Efigênio! Ele é amigo meu. Passou por aqui agorinha, chegando do serviço. Você vai morar na casa dele?

– Não sei. Acho que não. Me disseram que a casa dele aqui é meio apertada. Acho que fico lá só uns dias.

– Você já tem emprego arrumado?

– Ainda não. Mas assim que arrumar os documentos, consigo emprego e dou um jeito de ir morar noutro lugar. Me disseram que lá, com o Efigênio, tem de ser coisa para poucos dias.

– Tá certo. Olha, vamos lá fora, vou mostrar por onde fica a casa dele.

E depois, de beco em beco, a procura da casa do primo. Na cabeça, entreouvida no bar, a história do trocador fantasma do ônibus Pirajá se misturava à escuridão das vielas e às explicações dadas por Antônio Laurindo. Muita atenção no caminho a seguir. Um, dois, três postes sem lâmpada, até chegar ao quarto poste, iluminado. Antes de virar fantasma, falaram no bar, o trocador deixava o pessoal mais pobre viajar sem pagar. Tinha morrido por causa disso, na Polícia, e costumava reaparecer na última viagem da noite, fantasma. Mais uns vinte metros, um buraco largo, de enxurrada, um barraco de janelas azuis, virar à direita. Seguir então pelo beco mais largo, mais escuro, até chegar a um lote cercado de arame farpado. O barraco de tijolos e telhado de zinco, no comecinho da subida – uai!?, onde está esse barraco de tijolos, co­berto de zinco? Voltar atrás, então, verificar onde está o engano. Só falta agora aparecer o trocador fantasma do Pirajá.

Depois, de beco em beco, no escuro, mais uma tentativa. E outra. Nada. Ninguém. Melhor voltar ao bar. Não sendo duas da madrugada, encontrar lá o Antônio Laurindo. Sendo mais de duas, bar fechado, ficar sentado na porta até amanhecer. Com o dia claro, perguntar de novo. De certo vai aparecer alguém que conhece o Efigênio. O lugar lembra Morro do Monte Agudo, vai ser fácil. Mas, e agora? Onde está o caminho para o bar? O jeito vai ser encostar em qualquer canto, descansar debaixo de qualquer poste. Quando clarear o dia, tudo se re­solve.

E depois, encostado no poste, quieto no silêncio, a vista se acostumando ao escuro, começando a enxergar longe. Lá mais embaixo, uma fileira de janelas acesas. No asilo de velhos, em Morro de Monte Agudo, sempre deixam luzes acesas e alguém acordado, durante a noite. Deve ser assim no Pirajá, também. Ir até lá, então. Ou tentar ir, nesse labirinto de barracos e becos. Contornar buracos, saltar valetas, descer o barranco. As janelas iluminadas se aproximando. Dá até para ler, em cima da porta larga, de duas folhas, o letreiro: Matadouro São Renato. Uma das portas está aberta. Ninguém por perto, no corredor claro, de ladrilhos nas paredes, teto alto.

– Ô de casa! Ô de casa!

Depois, esperar um pouco, ver se aparece o empregado da noite, como no asilo de Morro do Monte Agudo. A porta entreaberta, ao fundo, dá para outro corredor de paredes enladrilhadas até o teto. Quase no fim desse segundo corredor, nova porta aberta, com vidros grossos na parte de cima, permitindo a visão de uma sala grande, vazia. O empregado da noite deve estar ali.

– Ô de casa! Ô de casa!

– Quieto aí, vagabundo! Quieto aí!

– Estava procurando a casa do meu primo …

– Quieto, falei! Quieto aí!

E depois, no noticiário do meio-dia, a voz compassada, estridente, do Rádio-Repórter Arnaldo Juscelino, O Que Conta A Verdade Da Polícia Para Os Ouvintes De Minas:

“Seb-astião Fer-reira da Sil-lva, ladrão de carnes, foi pilhado em flagrante, esta madrugada, no interior do frigorífico do Má-tá-dou-ro São Rre-ná-tô. O mel-liante, ao ser preso pela ronda do próprio Má-tá-dou-ro, disse haver en­trado ali por engano. Levado para a Pol-lícia, contudo, contou tudo au-tó-má-ti-ca-men-tê! Confessou que seu intento era roubar carne, que depois encaminha­ria a uma quadrilha especial-lizá-da nesse tipo de roubo e que vem causando enormes prejuízos ao Má-tá-dou-ro São Rre-ná-tô.

“Inter-rogado, o malfeitor Seb-astião Fer-reira da Sil-lva foi deixado sozinho no xadrez e ali tentou o sui-cí-di-ô!, o sui-cí-di-ô!, cortando os pulsos com as bordas de uma caneca de zinco. Frustrado na ação sui-ci-da, o mel-liante jogou-se seguidamente contra as paredes e as grades do xadrez, ficando bastante ma-chu-cado na cabeça e no peito. Como seu estado inspirasse cuidado, foi levado para o Hospital Distrital, on-nde veio a fál-lecer”.

 

 

 

Meu gato

(Inédito, escrito em 1999)

Meu gato me gela, me ferve. Tou até com medo de não agüentar. Quando ele vem assim, com aquele jeito, é demais. Não dá! Não dá mesmo! Tou doida para pegar um filho dele. Nossa!, vai ser demais!, pegar um filho dele. Tomara que venha menino de olhos verdes, igual ele. Mesmo se vier menina de olho castanho, igual eu, também vai ser demais! Sei que não posso descontrolar, perder a cabeça. Mas preciso demais pegar um filho dele.

Gosto de pegar filho. Já peguei cinco. Quero inteirar seis, com o do meu gato, meu primeiro homem louro, cabelo de palha de milho e olho verdinho, boca larga, dente grande, nariz fino, pele lisa. Nossa!, meu gato é demais! Tão novinho, coitadinho. Quase que podia ser meu filho. Podia ser namorado da minha filha mais velha, a Ana Luísa. Mas a boba não quis. Falei com ela:

– Olha aqui, Ana Luísa, vai lá, encosta nele, deixa ver no meio dos seus seios. O bico, não. Só no meio.

Mas ela é muito novinha, ainda nem tem 16 anos, não quis saber. Deixou ele ir embora, aquele dia, na pizzaria. Aí eu falei pra ela que eu ia pegar. Andava mesmo sem homem, com um fogo. Se ela quisesse, eu deixava pra ela. Até insisti:

– Olha aqui, Ana Luísa, tem certeza que não quer? Querendo, é a coisa mais fácil, pegar menino novo assim. Mostro como é que faz, você vai lá e pega.

Não quis mesmo. Então eu fui lá e peguei pra mim. Esperei as cinco da tarde, quando ele sai da marcenaria. Passei em frente, com aquele meu short mais justinho, vi que ele me viu, fui andando na direção da mina, com um garrafão de cinco litros e um de dez litros. Na volta, com os dois garrafões cheios, bem pesados, passei perto da marcenaria bem na horinha que ele ia saindo, ele e aquele mulatão desbocado, o Tereso, filho do Caçamba. Dizem que nem é filho do Caçamba nada. Parece mais é com o Alberto da peixaria, que está sempre na casa do Caçamba e é muito ligado na mulher do Caçamba. Aquela casa ali é toda bagunçada. O Tereso só podia mesmo virar desbocado e encrenqueiro. Já foi preso duas ou três vezes, por causa de briga, de confusão com bebida, com mulher. Falei com o meu gato, desde o começo:

– Olha aqui, você pára de andar com o Tereso. Aquilo ali não presta pra nada. Melhor sozinho que com esse Tereso.

Mas nesse dia, quando eu vinha com aquela água pesada, voltando da mina, meu gato ainda não seguia meus conselhos. Tava lá com o Tereso, na certa ia pra banquinha da Geralda, na praia, beber cachaça, comer peixe frito, mexer com as moças. Aí eu vi ele e falei:

– Olha aqui, Eduardo, não quer me ajudar com essa água não?, meu anjo!

O nome dele é Eduardo. É assim que a gente faz, pra pegar menino igual ele. Pede um favor, chama de meu anjo. Não tem um que deixe de vir, na hora, ajudar mulher a pegar peso. Pode ser até mulher feia e velha. Sendo nova ainda, de boas formas e conhecendo a manha dos homens, como eu conheço, não falha nunca! Nunca falhou! É o mesmo que chamar pintinho com a mão cheia de quirera de milho.

Veio na hora, me chamou de Luísa, falou pro Tereso ir andando, que dali a pouco ia encontrar ele na banquinha. Pensei comigo, nessa hora: – Vai se eu deixar.

O Tereso foi prum lado, nós dois viemos cá pra minha casa. Meu gato carregava o garrafão de cinco e o de dez litros. Falei que assim era demais, queria só que ele me ajudasse com o mais pesado. Fui tirando o de cinco da mão dele e nessa hora dei um jeito de encostar o peito no braço dele. Nossa! Me arrepiei de cima embaixo!

Ele também sentiu o calor. Vi na cara dele, nessa hora, que tava na minha mão. Era só não alvoroçar demais, pra não espantar o frango. Puxando devagar, com jeito, logo-logo ele ia experimentar o que eu tenho de melhor.

Aprendi a lidar com homem desde menina. Sei direitinho o que eles querem. Conheço a hora das preferências deles. Se tem outros homens por perto, gostam que a gente abotoe a blusa, puxe a saia mais pra baixo. Isso deixa os outros homens acesos, ligados, querendo ver o que acaba de ser escondido, e o nosso homem, nessa hora, fica todo inchado, pois é o único que tem o direito de ver tudo, tocar tudo. Se tem outras mulheres por perto, aí eu vou lá, trago uma camisa pra ele vestir, abotôo, dou assim um sinal de que tou com ciúme, e ele fica todo inchado também.

Na cama é onde é preciso prestar mais atenção. Se ele anda preocupado com dívida, com algum problema no serviço, é melhor não ir encostando muito. Melhor é puxar papo, deixar ele falar primeiro, oferecer alguma ajuda. Aí, quando ele começa a esquecer as contas, dá para ir encostando, apalpando. Agora, se ele não tem preocupação nenhuma, aí pode ir direto. Ou até nem ir, só ficar negaceando, lembrando de guardar uma coisa, indo beber uma água, inventando modo de passar na frente dele com pouca roupa ou sem roupa mesmo, pra ele ir esquentando.

Tem outra coisa: na hora que o homem começa a esquentar, tá na mão. Aí ele é meu, faço dele o que quiser. Homem quando sente o cheiro da fêmea vira brinquedo na mão dela. Com um pingo de malícia, a mulher faz o homem virar escravo dela, desse ponto em diante.

Sei disso. O meu terceiro homem, o Dionísio, era capaz até de matar, se eu mandasse. Obedecia feito menininho. Era só eu abrir um pouco as pernas, pra ele ver o alto das coxas, ou então curvar um pouco pra frente, deixando o meio do peito mais descoberto. Feito peixe que morde a isca, nessas horas era só eu falar, que ele fazia o que eu quisesse, porque tava entendido que mais tarde eu ia dar o que ele queria.

Tem isso também: não pode prometer e não cumprir, oferecer e negar. Mulher que é mulher não faz assim. Se tá querendo agarrar o homem, então agarra mesmo, não fica com essa lenga-lenga de não sei, tou pensando, deixa pra mais tarde. Quer? Então vai lá e pega. Mas tem que ser firme. Não pode ficar vacilando, que aí o homem assusta, distrai com outros assuntos, desiste, vai embora. Se deixou ele ver é sinal pra deixar ele deitar em cima.

O Dionísio, coitadinho, ficou mais de um ano comigo. Era um pretinho magro, amoroso como ele só. Se fosse por ele, a gente nunca saía da cama. Um dia, falei pra ele:

– Olha aqui, Dionísio, isso quando é demais pode até matar um homem. Você não sabe?

Ele desconversou, pediu mais. Toda hora queria mais. Muitas vezes largou o serviço no meio só pra vir em casa pedir mais. Já estava trabalhando pra mim, fazendo faxina numas casas, indo entregar meus óleos, meus cremes, meus xampus. De vez em quando, largava o serviço pra mais tarde, vinha encostando, pedindo, querendo. Falei pra ele:

– Olha aqui, Dionísio. Se você continuar querendo demais, não vai ter é nada. Olha lá o que você vai fazer.

Não teve jeito. Mandei ele ir passear. Falei que eu não queria mais nada com ele. Que não sou mulher de ficar presa por causa de homem. Tenho meus serviços, minhas obrigações, minha freguesia, gosto de passear, de nadar na hora que bem entendo. Não posso ficar à disposição de homem que só quer saber de cama. Resmungou, choramingou, voltou umas quatro ou cinco vezes, pedindo só mais uma, de despedida, depois acabou achando o rumo dele. Sei que toma conta de umas casas lá pros lados de Ubatuba, acho que na praia do Lázaro. Volta e meia aparece alguém contando que viu ele no ônibus, que mandou lembranças.

Esse foi um neguinho gostoso. Peguei filho dele. É o Antônio Carlos, nome escolhido pelo homem do cartório. Tá com quatro anos, tem aquele jeitinho meio preguiçoso do pai. Menino bom mesmo, quietinho. Bem diferente do irmãozinho mais novo dele, o Leonardo, de dois anos, que mais parece um foguetinho, um busca-pé. Esse vai dar trabalho. Já dá uma trabalheira.

Também puxou o pai, o Rui vendedor de fruta. Foi uma das maiores besteiras que eu já fiz. O Rui passava aí na rua, com o caminhãozinho dele, o alto-falante gritando os preços das frutas, me dava sempre umas a mais, de brinde, aquilo foi me cativando de um jeito que quando dei por mim, lá estava o homem estacionando toda noitinha na porta da minha casa, pra ver novela comigo e meus filhos, trazendo pizza pra assar na hora, cerveja gelada, puxando conversa, chamando pra dar uma volta enquanto os meninos estavam lá dentro, e numa dessas acabamos rolando na praia, num canto que eu conheço. Depois rolamos outras vezes no banco do caminhãozinho, num motel perto de São Sebastião, no apartamento de um amigo dele em Caraguá, em lugares que eu não conhecia. Homem casado, cheio de filhos, cabelo já meio grisalho, bigodão. Mulherengo como ele só. Me fisgou, o sacana. Demorei a ver que ele tinha me fisgado. Quando percebi isso, falei logo:

– Olha aqui, Rui. Acabou, viu? Não tem mais.

Ele entendeu. Continua passando por aqui com as frutas dele. Sabe que o Leonardo é dele. Gosta de brincar com o menino. O menino gosta dele. Chama ele de pai, até. Mas é só isso. Não tem mais nada.

Fiquei meio ressabiada com homem, depois desse Rui. Achei que nunca mais ia pensar noutro. Aí apareceu o meu gato. A Ana Luísa não quis. Então, pedi a ele pra carregar água, encostei o peito no braço dele. Viemos conversando pelo caminho. Em casa, pedi pra ele despejar o garrafão de dez litros no filtro. Tinha na geladeira um doce de maracujá, dei pra ele. O Leonardo e o Antônio Carlos também quiseram. Ele ficou lá, com os dois meninos, comendo doce de maracujá, em vez de ir pra banquinha encontrar o Tereso.

Aí chegaram minhas outras meninas, a Claudinha e a Milena, de volta da escola. São filhas do meu segundo homem, o Dinho. Um santo, esse, me deu a mão quando eu mais precisava na vida. Fiquei quase cinco anos com ele. Um homem de ouro, o Dinho. Tinha problema com bebida, morreu atropelado na Rio-Santos. Não fosse isso, era capaz de eu continuar com ele até hoje. A Claudinha e a Milena eram pequenas quando isso aconteceu, mas ainda lembram do pai.

Estão grandinhas, agora. Ficaram meio cismadas nesse dia, quando chegaram e viram o meu gato comendo doce com o Leonardo e o Antônio Carlos. A Claudinha, que já está com nove anos e é mais esperta, até me olhou com uma cara desconfiada. Empinei o nariz pra cima, saí pro quintalzinho. Ela veio atrás, com aquela cara de quem queria saber o que era aquilo. Falei pra ela, então:

– Olha aqui, Claudinha, você lembra que eu falei pra Ana Luísa pegar. Você não lembra disso? Você lembra também que ela não quis. Não lembra? Pois eu vou querer. Já comeu doce de maracujá. Vou marcar pra ele voltar sábado, comer uma caldeirada.

No sábado ele veio. Uma graça! Tão novinho, tão purinho! A Ana Luísa tava em casa também. Ela trabalha a semana inteira na Tabatinga, ajuda lá uma mulher que tem uma loja. Faz pacote, atende telefone, varre, tira o pó das mercadorias, dá recados. Vem pra casa sábado antes do almoço, fica com a gente até segunda cedo. Nem ligou quando eu disse que o Eduardo vinha comer uma caldeirada com a gente.

Aí, comemos a caldeirada, ficamos conversando, brincando todo mundo, uma alegria geral. Aí ele perguntou se eu não queria dar uma volta na praia. Pensei cá comigo: – Deus do céu, esse vai sair melhor que a encomenda.

Falei pras meninas maiores tomarem conta dos meninos menores, que a gente ia demorar um pouco. A Ana Luísa falou que eu podia sair sossegada. A Claudinha, toda sapeca, me olhou com aquela carinha dela, querendo saber sem perguntar. Falei pra ela:

– Olha aqui, Claudinha, sei lá o que vai acontecer, minha filha! Sei de nada, ainda.

Não sabia mesmo, porque pelas minhas contas a gente ia ficar só na caldeirada. Mais pra frente é que eu pensava atrair o meu gato pro meu ninho. Aquilo de ele chamar pra uma volta na praia não tava nos planos.

Pode parecer que não, mas eu sou uma mulher prática, organizada. Tenho o costume de pensar antes de fazer. A última vez que me pegaram de surpresa foi a única. Serviu de lição pro resto da vida. Foi quando eu era boba demais, mal tinha entrado nos 13 anos, tava começando a ver o mundo, a conhecer as pessoas que vivem fora dos orfanatos. Nessa época, toda a gente que eu conhecia eram as outras meninas de orfanato, como eu, os meninos dos abrigos pra meninos, os monitores, as freiras, os funcionários da administração, o pessoal da Polícia.

Um menino uma vez me levou pro meio do mato, tirou a minha roupa toda, ficou esfregando em mim. Eu tinha idéia do que ele estava querendo conseguir, mas só uma idéia. Aí ele começou a me bater, dizendo que ia me matar se eu contasse que ele não tinha conseguido. Peguei nessa hora um pedaço de pau e enfiei no nariz dele, no olho dele. O sangue saiu na hora, ele começou a chorar, gritou que eu tinha cegado ele. Aí eu falei com ele pra largar mão de ser besta, nunca mais encostasse a mão em mim.

Esse tinha mais ou menos a minha idade nessa época, uns dez anos. Um companheiro dele, mais velho, vivia também me rodeando, dizendo que uma hora ia me levar pro mato. Depois desse dia, quando escalavrei a cara do companheiro dele, parou de me rodear. Uns dois anos depois eu fugi de novo do orfanato. Eu vivia fugindo de tudo quanto era lugar pra onde me levavam. Nunca fui de ficar presa. Não sei quem foi minha mãe, não sei quem foi meu pai, então não tenho que dar obediência pra ninguém.

Aí, dessa última vez que fugi de orfanato, eu já tinha crescido. Faltava pouco pra acabar de encorpar, mas já era altinha, quase do tamanho de hoje. Parei na estrada, peguei carona com um caminhoneiro. Ele ficou me alisando, me apalpando, uma mão no volante, a outra nas minhas coxas. Até aí, nada demais, pois a minha vida inteira sempre teve homem se chegando pro meu lado. Deixei ele passar a mão. Acho bom isso. Gosto mesmo de carinho.

Ele tava indo pra Alfenas, no Sul de Minas, queria me levar. Contei que eu tava fugindo do orfanato, nem sabia direito em que cidade ficava o tal orfanato, só queria ir pra longe. Então fui indo com ele. Aí, nós paramos num posto de gasolina, pra abastecer o caminhão e almoçar. Comida boa, frango à vontade, polenta frita. Eu lá, comendo, e ele com a mão nas minhas coxas, por baixo da mesa. Aí ele começou a falar umas besteiras, a puxar minha calcinha, a apertar minha perna com força mesmo, chegava a doer. Aí eu falei pra ele:

– Olha aqui, rapaz, vamos parar com isso. Deixa eu comer quieta. Pode ir parando com essa mão, que tá doendo.

Ele fechou a cara, ficou bravo mesmo. Me xingou de putinha safada e levantou o braço pra me dar um tapa. Não agüentei. Tava com a faca na mão, enfiei a faca no braço dele. O sangue esguichou na hora. Juntou gente pra acudir o homem. Um garçom me tirou de lado, mandou que eu fosse pra cozinha, ficasse lá. Fiquei lá. O garçom apareceu depois, perguntou se eu tava bem. Contou que o caminhoneiro tinha ido embora. Ninguém ia contar nada pra Polícia. De noitinha, me levou pra casa dele.

Era casado, o safado. Chamava Duarte. Todo mundo chamava ele só de Duarte. Foi esse aí o único que me pegou de surpresa. Eu mal tinha 13 anos. Como já era grande, corpo quase de moça, a mulher dele achou ruim, quando ele apareceu lá comigo. Falou comigo, na cara, que não queria que eu ficasse ali, porque não dava certo duas mulheres e um homem na mesma casa.

Falei nada. Fiquei quieta. Deixei o Duarte falar, se entender lá com a mulher dele. Dormi no sofá da sala. Dormi mesmo, pesado, tava morrendo de sono. Aí, no meio da noite, quando dei por mim, tava o Duarte pelado em cima de mim. Ele tinha tirado a minha calcinha. Me deflorou, o sacana. Acordei com ele em cima de mim, já com as minhas pernas separadas. Acordei com a dor da hora em que entrou meio a seco.

Não gritei. Não fiz nada. Continuei ali, deitada de perna aberta, quando ele levantou e foi pro quarto dele, com a mulher dele. Mas entendi tudo que aconteceu. Eu sabia o que era aquilo que tinha acabado de acontecer comigo. Muita amiga minha tinha passado por aquilo, me contado. Mais cedo ou mais tarde ia chegar a minha vez.

Fiquei quieta o resto da noite. Mas o sangue tava fervendo dentro de mim. Tinha que dar o troco. Não podia deixar o Duarte ficar assim, todo folgado. De manhã, quando a mulher dele acordou pra fazer café, me chamou na cozinha. Foi falando logo, direto, na minha cara, pra eu ir caçando meu rumo, me virar na vida, deixasse o homem dela sossegado com ela.

Escutei aquilo. Saí sem nem tomar um copo d’água. Fui embora. Pedi pão numa padaria. Me deram. Fiquei zanzando pela rua, me contaram que o nome da cidade era São João da Boa Vista. Chegando a hora do almoço, fui andando na direção daquele posto de gasolina com o restaurante onde o Duarte trabalhava de garçom. Vi ele lá dentro, pelo vidro. Chamei. Ele veio cá fora. Aí, fingi que tava chorosa, falei com ele:

– Olha aqui, rapaz. Tou com fome. Não tenho pra onde ir. Preciso comer alguma coisa. Preciso de dinheiro pra pegar um ônibus pra São Paulo. Mas antes de ir embora, eu queria deitar com você de novo. Essa noite, na hora que eu tava começando a gostar, você saiu de cima.

Vi na cara dele que ele ficou uma brasa só, doidinho pra sair comigo na hora. Mandou eu entrar pelos fundos, me deu um prato de comida, na porta da cozinha. Me disse pra dar umas voltas e aparecer de novo de noitinha, que ele ia me levar a um motel e depois me dava um dinheiro pra eu pegar o ônibus. Pedi o dinheiro antes. Ele pensou, demorou, mas deu.

Saí dali, fui perguntando até achar a rodoviária. Ia comprar passagem e ir embora. Mas aí pensei que assim tava fácil demais pro Duarte. Ele me deflora, me dá o dinheiro da passagem pra São Paulo e não acontece nada com ele? Comprei a passagem pra dez da noite. Antes, fui lá no restaurante, encontrar o Duarte, de noitinha. Ele não me esperava. Achava que eu já tinha ido embora. Falei que não, que queria deitar com ele mais uma vez, deitar direito. No motel, como ele tinha falado.

Era perto dali, o motel. Fomos a pé. No quarto, a primeira coisa que eu fiz foi tirar toda a roupa. Ele ficou doidinho, foi logo tirando a camisa, desabotoando o cinto da calça, baixando o zíper. Nessa hora, eu falei com ele pra esperar um pouco, eu tinha que passar antes pelo banheiro, queria tomar um banho pra ficar mais cheirosa. Entrei no banheiro, vi em cima da pia um vidro de perfume. Era o que eu mais queria, nessa hora. Deixei o vidro cair, gritei pedindo ajuda. Ele veio, segurando a calça com uma das mãos, e eu fui logo cortando ele na barriga, com um caco de vidro. O sangue esguichou na hora. Aí eu cortei ele de novo, mais em cima, no peito, e tornei a cortar mais embaixo, por cima da cueca, e cortei ali mais outra vez, mais outra vez.

Ele desmaiou. Eu tomei um banho, limpei todo o sangue dos meus braços, do meu corpo. Fui pro quarto, vesti minha roupa. Ele acordou, ficou falando que eu tinha capado ele, que eu ia pagar, que eu ia ver, que não adiantava eu fugir. Aí eu falei pra ele:

– Olha aqui, rapaz, isso é pra você aprender a parar de deflorar menina que não tem pai nem mãe pra defender ela. Tomara que não dê pra você nunca mais deflorar ninguém.

Saí dali, passei bem sossegada pela portaria, ainda pisquei o olho pro rapazinho que tava lá. Fui pra rodoviária, cheguei pouco antes das dez, peguei o ônibus pra São Paulo. Viajei o tempo todo pensando em ir pra uma cidade de praia, que eu tinha vontade de conhecer o mar. De madrugada, na rodoviária de São Paulo, peguei o ônibus pra Ubatuba. Mas não cheguei a Ubatuba. Na parada de Paraibuna, o Dinho veio conversar comigo. Notou que eu tava com fome, me pagou um pingado com pão com manteiga. Aceitei porque tava com fome mesmo. Comi com vontade. Ele me passou um pratinho com o pão de queijo que tinha pedido pra ele, falou que não ia querer, se eu não comesse iam jogar fora, pros cachorros. Comi também.

No ônibus, ele foi pro lugar dele, me deixou quieta no meu. Na parada seguinte, em Caraguatatuba, ele veio pra perto de mim outra vez. Perguntou se eu queria alguma coisa. Falei não queria nada. Mas não fui bruta com ele. Eu tava espantada com homem, depois do que o Duarte fez comigo, depois do que eu fiz com o Duarte, mas o Dinho veio com um jeito tão manso que eu não senti necessidade de me defender.

Confiei nele assim, de cara. Contei que tinha fugido do orfanato e que tava fugindo do Duarte. Contei tudo. Ele escutou. Perguntou pra casa de quem eu tava indo, em Ubatuba. Falei que pra casa de ninguém. Ele então falou se eu não queria ir pra casa da mãe dele. Não era bem a casa da mãe dele. Era uma das casas que a mãe dele limpava, na praia do Massaguaçu. Ela ficava lá, como caseira, e fazia faxina em outras. Mais de dez casas. Era uma mulher já de certa idade, morava sozinha nos fundos dessa casa, tava precisando de alguém que ajudasse ela. Aí eu falei pra ele:

– Olha aqui, rapaz, tou perdida nesse mundo. Fico lá com a sua mãe uns tempos. Quem sabe não dou um jeito na minha vida.

A velha me recebeu mal, a mão cheia de pedra. O Dinho ficava o tempo todo na cidade, em Caraguá. Só aparecia de vez em quando. A velha nem falava comigo. Me levava junto pras faxinas dela, me dava os panos, as vassouras, os baldes, pegava firme no batente pelos lados dela mas toda hora vinha ver o que eu tava fazendo, mandava fazer de novo. Não me xingava mas também não me agradava. Pra mim, tudo bem. Nunca na vida ninguém tinha me agradado mesmo. Era só ameaça, pancada, fora os homens todos querendo chegar junto, relar, esfregar. Isso, pelo menos, não tava acontecendo ali, na casa da mãe do Dinho. Pra mim, então, tudo bem.

Uns tempos depois, minha barriga pegou a crescer. A velha perguntou se era filho do Dinho. Falei que não, que não era filho de ninguém. Mas pensei cá comigo que o desgraçado do Duarte tinha era enfiado um filho na minha barriga. A barriga cresceu mais, a velha voltou a perguntar se era do Dinho. Aí eu contei a história toda e ela então foi boa pra mim. Na primeira vez que o Dinho apareceu, ela chamou ele de lado, conversou, e depois o Dinho me chamou de lado, falou que ele e a mãe iam me ajudar, eu ficasse descansada.

Me ajudaram mesmo. Quando a Ana Luísa nasceu, o Dinho até ofereceu o nome dele, pra menina ter nome de pai no registro. No registro, ela é filha do Dinho. Mas ela sabe que o pai é o outro, o Duarte que eu nunca mais vi e ela nunca viu. O Dinho é que foi o pai dela a vida toda. Fiquei gostando mais dele, por causa disso.

Depois que tive a Ana Luísa, os homens aqui dessa vizinhança começaram a se assanhar pro meu lado. Cheguei a rolar com um e com outro, mas sem firmar nada com nenhum. Nesse meio tempo, fui me achegando mais no Dinho. Um dia, falei pra ele:

– Olha aqui, Dinho, tou vendo que você não tem mulher e tou gostando de você, do seu jeito com a minha menina, do seu jeito com a sua mãe. Se você me quiser, posso ser a sua mulher. Paro de sair com homem, fico sendo só sua.

Ele falou que não tinha jeito com mulher, nunca tinha pensado nisso. Falou também que era viciado em jogo e em bebida, por isso não morava com a mãe. Falou que o negócio dele era a noite, o baralho, não queria compromisso. Ficamos ali conversando, de vez em quando eu pegava a mão dele, notava que ele tava começando a esquentar. Dali uns dias, ele voltou pra ver a mãe, eu puxei ele de lado pra conversar de novo, peguei a mão dele, saí com ele pra praia, fomos andando, andando, até chegar num ponto que eu conheço bem, lá no Capricórnio. Aí eu puxei ele e ele veio. Fui a primeira mulher dele. A única. Prometi que ia ser só dele o tempo que ele quisesse.

Aí, toda vez que ele vinha, ficava comigo. A velha mãe dele notou. Veio falar comigo que tinha medo do filho dela não gostar de mulher, que eu tava fazendo um milagre na vida do filho dela. Ficou minha amiga mesmo, desse dia em diante. Foi ela que me ensinou a lidar com plantas pra fazer óleo de massagem, óleo de bronzear, creme pro cabelo, creme pro corpo, xampu natural.

Aí eu fiquei grávida da Claudinha. Depois fiquei grávida da Milena. O Dinho parou com a bebida, parou com o jogo. Veio morar comigo e com a mãe. Saímos daquela casa. Compramos uma pra nós, essa que é minha até hoje. Ficamos juntos quase cinco anos. A mãe dele morreu, ele voltou a beber de vez em quando, mas aquilo não atrapalhava. A gente vivia bem, só nós dois e as três meninas, até que ele foi atropelado.

Aí eu fiquei só com as meninas, tocando meu negócio de óleos, cremes, xampus. Tenho também as casas de faxina, mas essas faz tempo que eu ponho o pessoal daqui pra cuidar do mais pesado. Recebo dos donos, pago metade pra gente daqui que vai lá fazer a limpeza. Vou junto, no começo do dia, volto na hora do almoço, torno a voltar no final do dia, pra ver se trabalharam direito.

De vez em quando, se me dá vontade, pego um homem, rolo com ele nos meus ninhos. Mas nada pra durar muito. Só uma vez, duas vezes e pronto, mais nada, até pegar outro. Desses, só o Dionísio e o Rui é que demoraram mais tempo. O Dionísio até morou na minha casa. Era muito amoroso, jeitoso na cama como ele só. Se tivesse mais juízo e pegasse mais firme no serviço, até que podia ter continuado. Depois teve o Rui que me fisgou, o sacana. Quase que caí na dele. Acordei na hora certa.

Agora, tou com o meu gato. Naquele sábado, depois da caldeirada, rolamos na praia. No domingo ele apareceu de novo, cedinho, me chamando pra nadar. Nadamos lá na Cocanha, fomos andando pelas pedras até a Mococa, nadamos na prainha depois do rio, antes da Tabatinga, num lugar ali que eu conheço. Rolamos de novo.

Ele não tem muito jeito ainda não, coitadinho. É meio apressado. Mas é carinhoso. Gosta de carinho. É o primeiro homem meu que aceita massagem. Deixa eu pegar, apalpar, amaciar, fica quietinho, chega a cochilar. Aí ele vem, com aquele jeito dele. Nossa! É demais! Às vezes eu acho que é até pecado, de tão purinho que ele é. Vou pegar um filho dele. Vai ser demais! Aí, chamo ele pra morar aqui. Enquanto ele ficar bonzinho, deixo ele ir ficando. Se ele quiser ir embora, deixo ir, mas fico com a criança, de lembrança. Comigo é assim. Gosto de homem, gosto de carinho. Mas não deixo nenhum me prender. Nem faço questão de prender nenhum.

 

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