Arrumando a estante de casa, que está uma bagunça, me deparei com um dos livros que resenhei para o caderno Idéias e me abateu uma sessão nostalgia de um texto muitíssimo bem escrito, que me tocou durante a leitura. Busquei, então, em arquivo digital onde guardo resenhas feitas para Jornal do Brasil, o que havia escrito sobre o livro naquela época. O resultado é esse que compartilho com os leitores da www.revistapublicitta.com.br
Pobres partículas solitárias
À beira da morte, cientista que levou uma vida de isolamento decide
aprender a amar e escolhe uma criança como alvo de todo o seu afeto
´´Por favor, deixe que eu ame você. É divertido. É como adorar uma pedra“. Benedikt August Anton Cecil August Conde Waller von Wallerstein é mesmo uma pedra. Um homem só, que se dedica ao estudo dos sólitrons, partículas que vivem solitárias e mesmo quando colidem com outras, voltam a seguir seu curso. A escritora americana Irene Dische, porém, coloca à prova a teoria matemática do personagem central de Acordes tristes de uma valsa alegre, livro que escreveu em 1993, fazendo-o colidir com a vida em meio aos escombros do muro de Berlim e da reunificação da Alemanha.
Com o mesmo tratamento refinado, por vezes barroco, que Lucchino Visconti dava a seus filmes, Irene expõe, no livro, as reações do aristocrata e decadente Benedikt diante do novo. A Aids, que Irene apenas sugere, é o elemento de colisão que irá bombardear o universo de Benedikt por meio da ex-governamenta alemã oriental de Albert Einstein, uma imigrante russa e seu filho.
Tudo começa quando a irmã de Benedikt, Dolly, sugere que ele precisa amar e que seria mais fácil começar por uma criança. A partir de um anúncio em jornal _ Senhor solteiro com doença incurável procura criança, de preferência ainda pequena, para ser adotada _ o personagem de Irene e o livro ganhamem velocidade e constrastes. Benedikt substitui as conversas sisudas da academia, a troca de informações matemáticas pelo bom humor da espera, a esperança de que com a chegada do novo, algo irá acontecer.
Acontece. Com Valerie, a criança russa e sua mãe, e mais a ex-governanta de Einstein a história tomará novos rumos. As relações, sob o pano de fundo de uma nova Alemanha, começam a ser estabelecidas, reestabelecidas e desintegradas.
Cenas fortes são relatadas seguindo o ritmo de uma partitura em desalinho, do allegro ao majestoso para desaguar no minueto. A vida para essa escritora americana, que mora em Berlim, se deixa levar por aquilo que está à sua volta. Resta a tentativa de refúgio ou entrega ou mesmo as duas coisas alternadas ou nessa ordem.
É nessa tentativa de lidar com a morte iminente, o processo de cisão, decisão de um país que se reconstitui em universo único e não mais em conjuntos de sólitrons, que residem os motivos que levam Irene a fazer sucesso no meio editorial cult dos Estados Unidos.
E é justamente essa expectativa, estimulada por fatos singulares como a trupe que irá passar a acompanhar os dias de Benedikt, que faz com que o leitor consiga superar algumas páginas em que Irene se perde nas descrições barrocas dos ambientes e dos fatos históricos para reencontrar a história de Benedikt. Irene tem uma fixação pelo detalhismo. A vida de seus personagens é cheia de detalhes, muitas vezes exaustivos.
Os Acordes de Irene, no entanto, não são apenas mais um livro sobre Aids que chega às livrarias. Ele vai, para o leitor mais atento e paciente, um pouco além na sua tentativa desconstrutivista de provocar a convivência de opostos. ´`Era uma vez um homem que queria entender a vida. E ele pensou: para entender a vida, é preciso entender o vazio _ o nada. Então, ele sentou embaixo de uma macieira, e esvaziou seu cerébro de tudo que já havia conhecido. E, de repente, começaram a cair flores em cima dele“, conta Benedikt ao menino Valerie, quando começa a superar o vazio.
Essa é a promessa de Irene. Flores para quem conseguir romper com os solitróns de Benedikt. Ir além dos jardins intricados da aristocracia, dos preconceitos, conseguir ultrapassar o muro invisível e reunificar-se com seus iguais, opostos e o mundo singularmente novo.
A Berlim onde vive Irene exerce sobre ela e seus personagens grande influência. No livro de contos As judias: Histórias de Berlim e Nova Iorque (The Jewess: Stories from Berlin and New York), Irene antecipava essa fixação pelos aromas, as cores, as texturas e a própria proposta de despir para reconstruir, como fizeram os próprios arquitetos alemães, da límpida Bauhaus ao caos pós-moderno, onde Irene, por vezes se perde, e por vezes se encontra, justamente quando se despe.
Publicado em 09/03/1996 no caderno Idéias Fonte: JORNAL DO BRASIL