A drag queen mais famosa das noites cariocas virou purpurina. Laura de Vison partiu domingo para a eternidade, deixando um rastro e um legado de alegria e também o seu oposto, a tristeza daqueles que, nas décadas de 70, 80 e 90, lotavam o Cabaré Boêmio, na rua Santa Luzia, no centro do Rio de Janeiro, para assistir às suas performances.
O lugar que durante o dia servia comida vegetariana e natural se transformava à noite em palco (com sua escadaria de madeira unindo dois andares) para as performances de Laura de Vison, sempre marcadas por momentos bizarros, outros brilhantes, mas tudo de um raro e fino humor, mesmo quando escraxado, quando, por exemplo, devorava um fígado bovino cru, com sangue escorrendo pela enorme boca pintanda ao som de “This is my life”. Do teto à escadaria pendia uma cordinha por onde ela puxava um balde cheio de água ao som de “Súplica cearense”, fazendo chover naquele local alternativo, que se tornou cult. Ou, ainda, lúdico, até mesmo quando da mesma gordinha pendia um pênis de borracha ao qual ela se entregava ao som de “Mamãe eu quero” e distribuía balas à platéia, divertindo a todos.
Laura de Vison era enorme de gordo – 200 kilos – e tinha seios fartos. Era também professor, de História, e impunha respeito aos alunos, pois entendia que ao mestre cabe ensinar e se fazer entender, mas também despertar o interesse e cobrar em troca o aprendizado.
Sônia Araripe, que foi editora-executiva do Jornal do Brasil e é profissional de primeiro time, deixou registrado em seu blog
(http://soniaararipe.blog.terra.com.br/) que já sente saudades do professor David, que lecionava para amigos seus, em colégio da rede pública, e que ela via passar todos os dias pela rua e a cumprimentava respeitosamente. Formado pela Faculdade Nacional de Filosofia (hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro, que à sua época de estudos era a Universidade do Brasil), Laura de Vison veio ao mundo com o nome de Norberto Chucri David. É esta a foto de sua formatura:
Foi como professor que ele cativou alunos, e como drag queen que ele encantou lotadas platéias. O nome Laura ele mesmo escolheu, o sobrenome ganhou por usar casacos de pele no carnaval e até na praia, para encobrir os seios avantajados que começou a ganhar ainda menino, e que acabaram por se transformarem na sua marca registrada, abrindo espaço para a ousadia de suas apresentações.
Figura que passou a ser cultuada no mundo fashion, atraindo para seus espetáculos até estilistas como Jean-Paul Galtier, Laura de Vison sempre manteve a vida dupla de estrela e mestre, sem se conflitar com nenhuma das duas. Ao contrário, distribuía conhecimentos de história e filosofia, verdadeiras pérolas à sua platéia mix, de oficce-boys a executivos, costureiros a estilistas, cantores, prostitutas, bêbados e boêmios e todos aqueles que viveram os anos loucos das noites de 70, 80 e 90 de um Rio de Janeiro ainda saudoso do tempo em que foi capital e glamouroso e libertino como o são as metropóles litorâneas, onde primeiro aportavam, nos tempos idos, as novidades, para depois se propagarem para o interior.
Laura de Vison era o próprio espírito carioca da diversidade, da alegria, do descompromisso e também do compromisso. Dos duplos e dos infinitos personagens que caíram como um casaco de pele nas suas apresentações.
Fica aqui, registrada a ausência desse ícone carioca, agora presente em filmes e imagens que convidam à alegria. Sonia Araripe sentirá falta de ver o professor passar, e muitos sentirão falta da alegria dessa drag queen que tornava mais quentes as noites cariocas. E irradiava brilho por onde passava.
Carlos Franco